30 abril, 2009

O cheiro da Morte e dos rendimentos com tributação exclusiva retida na fonte – Ivan 8,8

Senti um caroço num lugar que não dá para publicar aqui. Percebi que algo estava errado quando revisava a coluna dos rendimentos isentos de tributação da minha declaração de imposto de renda.
No caminho para o hospital do outro lado da cidade, uma nuvem de fumaça revelou o quarto cavaleiro do apocalipse: Morte cavalgava seu corcel de aço, plástico e pneus de borracha, cruzando as faixas da marginal em zigue-zague.
Tentei escapar do relinchar estridente da sua buzina, mas uma coluna interminável de carros abandonados impediu o avanço do meu carro. Abandonando minha redoma de segurança e ar-condicionado, enfrentei o asfalto duro e o calor fétido que emana do rio Pinheiros.
Em segundos, porém, o cavaleiro vestido com um manto negro e acolchoado me alcança, sem revelar o rosto vazio por trás de seu capacete. Da caixa fúnebre em suas costas ele saca sua foice mortal: uma nota fiscal que eu havia esquecido de incluir no balanço para o contador.
Era chegado o Dia do Juízo Final, quando todos os mortos se levantarão e serão auditados pela Receita Federal – que permitirá o acesso dos justos à companhia do Criador, sentenciará os impuros ao purgatório do Pente Fino e os infiéis sonegadores à danação infernal.

29 abril, 2009

O calor da Guerra com consumação mínima – Ivan 8,7

Percebo a presença do terceiro cavaleiro do apocalipse nos campos de combate da balada do sábado à noite: Guerra ascende sua pira de sacrifício e satisfaz sua sede de sangue ao ritmo de funk e música eletrônica.
As primeiras vítimas dos morticínios são sempre as inocentes mulheres-e-crianças. Meninas de 16 anos sucumbem às doses massivas de álcool, ingeridas indiretamente por meio de Coca Zero batizada. As que ousam rumar sozinhas ao banheiro são devoradas nos cantos escuros por bandos de chacais com camisetas de times europeus de futebol. As mais cautelosas conseguem escorar as mais fracas que desmaiam, e protegem a chapinha dos primeiros jatos de vômito.
Os jovens combatentes inimigos travam suas disputas territoriais pelas fêmeas ainda sóbrias o suficiente para responder aos ataques orais, mas bêbadas a ponto de moderar suas reações à interação erótica tão esperada. Totalmente entregues à pilhagem e ao estupor, os guerreiros enfurecidos não conseguem mais responder aos gritos de guerra dos generais estrategistas que percebem a eminente escassez de comida e cerveja gelada.
Num canto escuro, eu vejo o Horror e choro porque meu celular não tem uma câmera fotográfica.

28 abril, 2009

O toque da Peste com odor floral e tripla ação bactericida – Ivan 8,6

O abuso da feijoada, após sete refeições consecutivas, atrai a atenção da segunda cavaleira do apocalipse. Peste surge depois das 11 da manhã e justifica seu atraso pela febre do filho e a greve dos perueiros. Eu sorrio com pesar (sempre tenho dificuldade com essa mistura facial de aquiescência e ternura) enquanto sobreolho uma reportagem sobre os protestos em oposição ao fim da Humanidade.
Sem perder tempo, a demoníaca encarnação de tumores viscerais varre meus domínios e liga o aspirador enquanto tento, sem sucesso, assistir à reprise de House. A empregada rapidamente despeja suas toxinas e cobre os assoalhos da casa com vermes, fungos, bactérias e Ajax Flores Campestres.
Sinto-me intoxicado e sufocado pela presença de outra pessoa com quem preciso dividir o resto da Humanidade e lavar a louça. Minha esperança é o refúgio no único local onde nem mesmo baratas poderiam sobreviver ou fazer faxina. Faço meu abrigo instável no território clandestino, no cemitério radioativo, na terra-de-ninguém do Quarto do Meu Irmão, onde nenhuma mulher, luz do sol ou produto de limpeza jamais ousou ir – e lá eu espero pelos novos sinais da perdição entre garrafas de Pepsi Twist light e pacotes semi-vazios de bolacha.

27 abril, 2009

O abraço azedo da Fome Delivery – Ivan 8,5

Com o soar dos sete despertadores do juízo final, abro o sétimo e último pote de feijoada congelada da minha vó. Horas depois, recebo a visita do primeiro cavaleiro do apocalipse. Fome surge na entrada de serviços, precedida pelas trombetas do interfone.
O cavalheiro retira seu elmo com viseira espelhada e se apresenta como Deividnelson. Sua mensagem para o mundo é igualmente confusa: ele clama que a pizza foi 20 reais, mais gorjeta.
Reclamo o esquecimento do guaraná família, o que traz dolorosas lembranças dos que se foram para um lugar mais próximo do nível do mar. Passo a noite em claro intrigado pela simbologia: esta pizza tinha oito pedaços – OITO!
Não pode ser coincidência; deve ser um novo sinal, que preservo intocado na geladeira.

26 abril, 2009

O Eremita recebe a visita da voz divina – Ivan 8,4

A morte de meu travesseiro poderia ter me abalado em dias anteriores, mas agora me sinto apaixonado pela minha vida revigorada. I’m fulfilled by the emptiness of all those long gone.
E a esperança é a última a perceber que todo mundo já foi pra casa faz tempo e que só sobrou a conta para pagar. Recebo um e-mail de outra sobrevivente igual a mim, que vive num pequeno povoado isolado, uns 450 kms daqui para o leste. A mensagem é curta, mas de uma beleza rústica: “seu blog, como a vida, é uma merda.” As palavras me aquecem e reafirmam meu novo propósito para esses dias que ainda me restam. Vou espalhar os dez mandamentos em post-its que me foram revelados por um anjo stripper de biquíni.
À noite, a aparição ruiva retorna só de botas e batom, e pede para eu arrumar o quarto de hóspedes porque os Quatro Cavaleiros do Apocalipse estão chegando - logo agora que eu estava começando a me divertir.

20 abril, 2009

Os novos dez mandamentos em post-its – Ivan 8,3

1. Não age somente em prol de bem maior ou como se teus atos fossem regra universal, mas também fazê-o como cavaleiro medieval, gentleman britânico ou como o Superman ou outro personagem de HQs – e de preferência da forma que te traga mais dor, mágoa, rancor ou nobreza.
2. Não mentirás, nem sonegarás, nem trairás, nem matarás, nem prejudicarás ninguém (nem se ele merecer), muito menos divertir-te-ás.
3. Ama, acima de todas as coisas, a mim, seus pais, seus irmãos, seus semelhantes, seu país, sua empresa, seu time, a natureza, o desenvolvimento sustentável, você e todas as coisas, nessa ordem.
4. Não perderás nem ignorarás suas tarefas anotadas em post-its, ou serás condenado à danação e ao esquecimento das senhas do net-banking.
5. Ria sempre do seu próximo como ele riria de ti mesmo.
6. Guarda os domingos para depois.
7. Para cancelamento da fatura, verificação do saldo, desespero ou crise com namorado, tecle 8, ou aguarde para falar com um dos nossos operadores.
8, 9 e 10: Em caso de dúvidas, desliga e liga de novo.

19 abril, 2009

O sacrifício do travesseiro mártir – Ivan 8,2

Meu travesseiro morreu na madrugada de ontem. Acordei de manhã do seu lado na cama e o chamei para o café, mas ele não se mexeu. Quando tentei fazer uma massagem para animá-lo, percebi que ele estava frio, imóvel. Em desespero, tentei chamar uma ambulância, mas as linhas estavam desconectadas desde que a humanidade acabou e desceu a serra para aproveitar o feriado no litoral.
Tentei reanimá-lo seguindo as instruções sobre ressurreição cardio-pulmonar que encontrei numa caixa de sucrilhos, mas toda vez que assoprava sua boca acabava coberto de inertes penas de ganso.
Conforme os desejos expressos em seu testamento, o enterro celeste seguiu o ritual budistas de dissecação. Poucos urubus comparecem para refestelar-se nas plumas que voavam, com o vento, para um lugar melhor, flutuando sobre a pista local da marginal Pinheiros, sentido Interlagos.
Nessa noite, enquanto adormeço no sofá reclinável da sala, um anjo ruivo surge num biquíni e me entrega os novos dez mandamentos em post-its.

18 abril, 2009

A Humanidade termina e desce a serra no feriado – Ivan 8,1

Na sexta-feira, a Humanidade acabou e desceu a serra para aproveitar o feriado no litoral.
Eu fiquei para trás, sozinho.
Minha missão é audaciosa: gravar a final do paulistão para meu irmão, pagar a conta do gás que vence na segunda e registrar os últimos suspiros de uma sociedade vazia de significado.
Esse é o diário de um sobrevivente, um evangelho repetitivo e desagradável.
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As cinco profetas e ex-namoradas já haviam alertado sobre os sinais, como a vitória do Obama, o aquecimento global e o fim dos episódios inéditos de House. Mas todos os outros ignoraram os sinais, e eu continuei postergando o retorno ao cardiologista. Quando senti o braço esquerdo começar a formigar, já era tarde demais: os ingressos para o Radiohead sempre esgotam depois que o cara que furou a fila compra o dele.
Seis horas de Guitar Hero depois, eu não tinha mais forças para terminar de digitar minha qualificação para o mestrado nem para qualquer outra auto-indulgência mais manual.

13 abril, 2009

Elenco

Um professor, um cientista, um jornalista, um trovador e um ser humano entram num bar.
Quando eles vão pedir suas bebidas, o barman começa a tossir e a ficar roxo. O cientista percebe que ele está engasgando e começa a rascunhar algumas propostas (como o aprimoramento da manobra de Heimlich) a serem publicados num periódico no próximo semestre. O professor explica ao homem que ele está sufocando e vai morrer se não prestar atenção nas suas recomendações.
O barman morre, evitando assim responder às incisivas questões do jornalista sobre seus objetivos reais com aquela simulação que pretenderia deslocar as atenções sobre o escândalo do financiamento da campanha do prefeito – no dia seguinte, o sobrenome do barman sai errado no obituário.
Só então o ser humano horroriza-se com o ocorrido – ele tinha saído, momentos antes do desastre, para ajudar uma velhinha a atravessar a rua.
O dono do bar contrata outro barman; a velhinha vota de novo no prefeito, que se reelege.
Anos mais tarde, o trovador publica este texto num blog.