24 fevereiro, 2009

Um dia como hoje

Há algo de preocupante em precisar recorrer a um calendário, ao relógio ou ao colega ao lado para descobrir que dia é hoje. Não conseguimos reconhecê-lo?
Seu colega ao lado, que sabe que dia é (mas não qual será o seu dia), não pode te explicar por que você não sabe – ignorância não se explica, tampouco nos alivia.
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É triste ter que enumerar para individualizar os dias, eles acabam somente enfileirando-se ao infinito, do um ao trinta, ou trinta e um, ou menos; e voltando ao um, acrescentando mais um mês, um ano – uma engrenagem menor que move outra maior, mais um grão de areia na parte de baixo da ampulheta, igual a todos os outros que ainda restam em cima.
Se os dias não fossem tão confusos e iguais (como nós), saberíamos quem são (e quando seria o nosso dia), ou eles continuariam a dissolver-se em multidões não mais padronizáveis, mas caóticas? Reconheceríamos, ciclopicamente, ao menos o último, antes que tivesse passado e levado tudo?
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Dizer que hoje é terça não é uma resposta – o que é uma terça, afinal?
É só uma etiqueta: assim como um crachá oculta o psicopata atrás do terno e gravata da normalidade, não conseguimos prever, de longe, quais são as verdadeiras intenções por trás desse nascer do sol dissimulado ou dessa garoa que impede a alvorada de respirar.

19 fevereiro, 2009

Lista em xeque

Primeiro você anota o que precisa fazer num pedaço de papel. Num caderno pautado, lista as ferramentas e materiais, agenda consultorias com amigos e soma os custos numa planilha. Os post-its começam a crescer como bolor ao redor dos móveis e na geladeira com alterações de última hora. Depois de traçar algumas rotas logísticas pelo mapa, programa o despertar para bem cedo, para tentar concluir tudo até o fim do dia.
Depois de anos de procrastinação, meses de necessidade, semanas de ansiedade e dias de preparação, em poucas horas está pronto.
Só então percebe o erro de principiante. Um vício que contaminou o projeto desde o início. Devia ter anotado em algum lugar por que precisava de tudo isso.

18 fevereiro, 2009

Múltipla escolha

Tente apresentar uma amiga sua que está solteira e que "super-combina" comigo; o encontro arranjado será a solução de todos os problemas – dela – porque, invariavelmente, ela acabará se envolvendo com (exemplos retirados de situações similares vivenciadas nos últimos meses):
a) um italiano em visita ao Brasil para concluir os últimos três anos do seu doutorado
b) um contador de 1,90m com o apelido de “Teta”
c) um japonês alcoólatra sem camisa
d) um ex-ex-namorado
e) uma bibliotecária
Enfim, acho que é basicamente isso o que as mulheres querem (pelo menos do ponto de vista das minhas experiências passadas).
...
Em outra história não-relacionada, minha auto-estima decidiu demitir-se sem aviso prévio para seguir carreira solo – mas o que importa é que ela em breve vai encontrar alguém que possa fazê-la feliz... e ainda somos bons amigos!

09 fevereiro, 2009

Piloto passageiro

Os olhos arenosos mesclam a estrada, o horizonte e o começo do sonho num piscar sem retorno à lucidez. Relaxadas, as mãos escorregam pelo volante, saindo da posição 10:10 e voltando o tempo para 9:15, 8:20 – às 7:25, esbarram na perna que começa a pesar no acelerador. O som da chuva começa a se distanciar, assim como o rádio; só resta o hipnótico mantra pendular do limpador de pára-brisa.
Sonha que voa acima das nuvens que ainda chovem; a leve turbulência seria um sinal de que as rodas engasgam nos olhos de gato ao cruzar as faixas. O resto da sua consciência racionaliza que, se o carro pender à direita, restaria ainda duas faixas; se for para a esquerda, a perna sobre o acelerador deve garantir velocidade suficiente para uma capotagem no canteiro central.
Do seu sonho, olhando para baixo, pode ver um carro que se aproxima pela faixa do meio e deve, a qualquer momento, buzinar para despertá-lo e ancorá-lo de novo ao solo e a pista – até torce por uma colisão menor com esse carro, um pára-choque amassado em troca da garantia de um despertar.
A curva insinuava-se na neblina quando uma grande nuvem cinza cobriu os carros e engoliu todo o mundo do sonhador, que voa cada vez mais para o alto e não vê mais nada.
Esse descontrole desesperador e silencioso é o que eu (e talvez você também, há ainda mais tempo) tenho vivido nos últimos três anos da minha vida.

08 fevereiro, 2009

Cafés




















(Wanderlust)


Black as the devil
Hot as hell
Pure as an angel
Sweet as love
(Talleyrand)


Negro como a noite
Forte como o pecado
Doce como o amor
Quente como o inferno
(Café Suplicy)

07 fevereiro, 2009

Perdas e perdões

“Não se preocupe, é uma virose que está rodando com o inverno”, disse o doutor enquanto recomendava repouso e o colocava sob observação.
A infecção generalizada, no segundo dia, parecia uma garantia de bastante repouso em poucas horas. Sob os olhares úmidos dos filhos, e protestos da equipe da UTI, removeram por poucos minutos o tubo que garantia a respiração.
As palavras foram poucas, mas o também rarefeito ar a cada tosse alongou a confissão: aquilo tinha acontecido há muito tempo, mas não há tempo suficiente para esquecer-se. Sob suplícios moribundos, só os lábios da esposa cederam o perdão, enquanto os filhos calavam, decepcionados pelo fim não ter chegado a tempo de poupar a desgastante revelação.
No terceiro dia veio a alta do hospital, acompanhado das congratulações e da surpresa da equipe que cuidou do caso. Mas os médicos só estavam felizes pela recuperação do paciente porque não ouviram sua história – ou talvez só estivessem aliviados por não ter que enfrentar mais um processo duplo por erro de diagnóstico.
Ninguém apareceu para buscá-lo na porta do hospital – nem esposa, nem filhos, nem perdão – só o taxista, que agradeceu a gorjeta depois de deixá-lo no meio da ponte entre a zona sul e o fim.

06 fevereiro, 2009

Escrever para não viver

Evitar o ridículo poderia ser um objetivo para qualquer escritor. Mas inviabilizaria qualquer outra palavra depois de “Eu...”.
Não consigo ler essas frases aí embaixo e sentir um pouco de vergonha pelo ridículo de escrevê-las – e mais, embaraçoso ainda, publicá-las. Mas evitar o ridículo seria fugir de mim mesmo e ignorar meu mundo.
Talvez seja circunstancial: não dá pra levar a sério um cara mal barbeado, de samba-canção, camisa aberta no peito, chapéu panamá e um sóbrio bloquinho de anotações preto.
Há algo de ridículo no próprio ato da escrita. Se pudesse beijar Helena ou saquear Tróia, Homero não gastaria horas com a Ilíada.
Mas a tentação é grande demais: como não registrar algo como “os gestos dos heróis não precisam de adjetivos; a única ação para alguns escritores envolve tinta, suor, dores nas costas, miopia e calos nos dedos”?

05 fevereiro, 2009

As madrugadas são para os fortes

Algumas pessoas são maiores do que suas camas e recusam-se a algemar-se entre lençóis, oferecendo o pescoço à guilhotina do travesseiro.
Para essas pessoas, as madrugadas são o Velho Oeste selvagem e cheio de oportunidades, o Atlântico com as promessas do Novo Mundo. Aos que ousam cruzá-las, há a promessa esperançosa da terra-a-vista, vislumbrada, num novo horizonte, pelo nascer do sol.
Madrugadas são o campo de batalha contra o inimigo interno e invencível do sono, ceifador que, como a morte, tenta os justos com paraísos oníricos e ameaça a todos com pesadelos dantescos. “Um dia você vai morrer, e será assim” – sussurra o desenlace inconsciente ao que sucumbe e adormece.
São o teste para os que não tem obrigação de acordar cedo e o desespero para os que, na verdade, não tem motivos para levantar-se em qualquer horário porque, afinal, nunca realmente despertaram.
É o único lugar em que se pode escrever em paz, longe da visão incandescente do mundo. São um convite em branco para os que se recusam a esperar o próximo ataque de diarréia cotidiana de olhos fechados.

03 fevereiro, 2009

Ligações

Alô?
E aí, cara, como é que vocês andam?
...
Pro México?
Mas você ligou pra ela?
Mas ela não pode ler e-mail no México?
...
Como assim, quanto tempo?
...
Que ex-namorado?
.
Tá, a gente se fala outro dia.

02 fevereiro, 2009

Enjoy your cup of depression

O problema não se resolve com uma bolsa nova. Ou com um telefonema. Nem com um corte de cabelo diferente. Muito menos com giletes. Um pedaço de bolo só pioraria as coisas.
Podia tentar um pouco de sexo, mas daria muito trabalho. E seria tão útil quanto os 10 minutos a mais de soneca.
Sei que o médico não aprovaria, mas a única coisa que parece funcionar é continuar coçando a casquinha da ferida.

01 fevereiro, 2009

Alheio

Cada página lida é uma frase não escrita.
Cada mapa estudado, um passo não dado.
Cada filme na platéia, uma cena não ensaiada.
Todo diálogo é um beijo sem toque.
Cuidado com as vidas alheias. Evite a tentação de que elas ocupem e previnam todo o seu viver.
Limite sua curiosidade, seu interesse e sua dedicação aos gestos que não são seus. Ou, nos seus últimos dias, só terá histórias alheias para contar.

Amador

Queria escrever um livro sobre o amor. Não sei se isso ainda é possível. Não conheço ninguém que ainda consegue escrever meia dúzia de frases verdadeiramente vivas e novas sobre amar. Oito frases, então, seria impossível.
Ainda é permitido (e é a escolha mais óbvia e acessível) cantar o amor, ou até mesmo filmá-lo, pintá-lo ou fotografá-lo. Talvez tenhamos que ser gratos por ainda poder vivê-lo aos poucos.
O problema de escrever é que exige todo o seu amor. Gasto como método, não resta muito para ser também objeto ou fim para nós, escritores-amadores.