06 outubro, 2009

Pena

Aquela fila interminável de escapamentos, e já estávamos sem paciência, dentro do carro que vencera centímetros nos últimos minutos. No alto da ladeira, uma caminhonete estava encalhada, quase náufraga – os pneus afundavam sob o peso de quilos de banana, tangerina, maçã e morangos.
“No meio da pista, que filhoda...” mas aí, no meio da ofensa, parei – como ele parara, no meio da subida incompleta.
Um bigode honesto, quase arrependido, saiu do carro – filho de uma, como a minha. Tentou subir as ladeiras do Morumbi com a caçamba cheia de frutas, mas os deuses não deixariam que ele galgasse esse Olimpo.
Só pensamos em descer do carro para ajudar a empurrar quando viramos a curva e vencemos o trânsito. Só pensamos.
Em minutos veio a chuva, molhou as frutas, levou embora a encomenda mas não lavou a pena.

Diálogo

I: Opa. Vamos comer?
K: Já peguei o endereço do Zé do Hamburguer. Fica na Caiubi.
I: Ah, perto da casa do Cavechini!
K: Você sabe onde fica?
I: ... não...
K: ...?

08 setembro, 2009

O que fazer?

A aposentadoria veio com lágrimas (dos que ficam) e uma placa na parede (do que vai): o que vão fazer sem mim?
Contratam uma menina mais nova, que fez um curso com um nome cheio de estrangeirismos.
Executiva recém-contratada revoluciona contratos corporativos em fusão com chineses, eu li na gazeta do mês seguinte. Eu paro de assinar o diário, mas as notícias não param de chegar nem de acontecer.
Ela recebeu um convite da diretoria, ouvi. E está procurando um substituto. Cogito mandar meu currículo, mas ele precisa ser digitado, e minha máquina de datilografar está sem a letra J.
O que vou fazer comigo?

21 julho, 2009

Rejeição

"As razões de minha recusa são múltiplas, mas não se preocupe, agirei com clemência. Em primeiro lugar, devo dizer que vosso manuscrito oscila, do princípio ao fim, entre o banal e o desinteressante. O que deveria ser literatura se transforma, na verdade, em poderoso sonífero. Devo reconhecer que emana de vossa prosa uma tênue musicalidade, mas, infelizmente, essa ladainha é antiquada, e o refrão é tedioso. Não pretendo arrasá-lo, porém devo dizer que raramente li um texto tão coalhado de defeitos. Que fazer? Apesar de todo o empenho, o senhor não tem talento.
(...) O senhor é livre para efetuar novas tentativas, ou para ter o bom senso de se curvar ante meu veredicto."
(“Vaticinador”. In: A arte de recusar um original, de Camilien Roy, p. 43)

14 julho, 2009

Conto de fadas

De tanto ser arrastado pelo braço, o ursinho de pelúcia acabou descosturando; rasgou e foi esquecido no fundo do armário (de que serviria um urso que só pode dar meio abraço?). Lá encontrou uma bailarina de porcelana que perdeu uma mão quando caiu da prateleira.
Ele tinha sido usado demais; ela não tinha recebido a atenção que sua delicadeza exigia.
O encaixe era perfeito: com o apoio do outro membro da bailarina, o ursinho podia voltar a abraçar; pela primeira vez na vida a bailarina ganhava um par para a dança.
Mas esse Frankenstein de pelúcia e porcelana era escorregadio, instável. O urso não achava buracos na superfície de porcelana da bailarina para poder se costurar junto a ela. A bailarina tentou derreter o tecido do urso para amalgamar-se, mas o queimou.
Eles andam juntos, trôpegos – o sorriso costurado do urso nega, mas seus olhos de botões ainda tateiam em busca de um tecido macio para se amarrar com um fio de matrimônio.

13 julho, 2009

Turn yourself back to me

A sala silencia sem o compasso dos seus saltos altos pelo corredor; as paredes ainda ecoam as sombras dos seus últimos passos. Espero no escuro, desde que você desligou o interruptor, segundos antes de fechar a porta.
Náufrago, me afogo no lago nítido de um espelho que evidencia a falta que você faz para a minha barba. Uma fina camada de poeira denuncia os cinco longos dias em que as pontas dos meus sapatos não morderam os bicos dos seus. A louça eu lavei, sozinho, no dobro do tempo – sei que você não vai querer uma pilha para te receber quando voltar. Porque você vai voltar amanhã.
De manhã, vou comprar creme e lâminas novas. Não são para mim; eu já sou todo para você.

03 julho, 2009

Prêmio

O bilhete mostrava quatro das dezenas, mas faltavam duas. Deu míseros 82 reais e alguns centavos, divididos entre centenas de outros azarados que erraram na hora de completar a cartela. A viagem pro sul vai ter que esperar, assim como a TV nova e aquela dívida antiga com seu irmão.
Na outra ponta do balcão, ela encarava o vazio de dentro da sua taça. Ele decidiu pagar o refil – ela parecia precisar de outra dose tanto quanto ele. O nome do drink que ela tomava era quase tão incompreensível quanto o nome dela.
A conta dos dois deu 82 reais e os mesmos centavos, que ele pagou sem perceber a ironia. Deixou o dinheiro contado no balcão, sem conseguir mais tirar os olhos daquele sorriso.

12 junho, 2009

Toda a beleza triste

Por que os beijos tristes precisam ser os mais bonitos? Eles comprimem entre os lábios todos os outros beijos igualmente impossíveis, igualmente doces e irreais que foram evitados antes e talvez não aconteçam nunca mais. Suspiram entre satisfação finalmente alcançada e decepção antecipada. Envolvidos num abraço interminável, exigem mais enquanto despedem-se novamente.
Ou... pode ser que toda a beleza floresça desse “talvez”.

Para todos vocês que não conseguem agüentar essa beleza por ser triste demais (humana demais, talvez), há o consolo de que vocês podem ser felizes. É mais fácil. Para todos vocês, feliz dia dos namorados.

02 junho, 2009

Outlined / Flip flopped

Hoje as entradas para a Flip começaram a (não) ser vendidas.
Depois de uma hora na fila, somente uma pessoa conseguiu comprar ingresso porque o sistema caía constantemente. A fila só andava para trás, cada vez maior, quase beirando a meia centena. Fiz as contas: 1 pessoa/hora X 14 pessoas na minha frente = dia perdido.
Mandei tudo praquele lugar e fui embora, incomodado pela insuficiência do ar condicionado e constrangido pela semelhança daquela situação com minha estática vida pessoal. Foi um alívio poder sair daquela fila. Ao menos daquela.
A new man outlined: “um novo cara fora da fila”.

23 maio, 2009

Com razão

A faixa de pedestres fica a uma dezena de passos da porta de casa no sentido contrário, mas ele faz questão.
Nenhum carro enquanto ele espera o sinal. Começa a cruzar a rua sob o holofote ao lado da câmera da CET.

Os passos ecoam na noite até serem engolidos pelo motor que desce solitário a rua.

Ele percebe o farol que se aproxima, mas não reduz os passos, protegido pelo homem verde luminoso, a poucos metros, na outra calçada. Ele está seguro de que não deve ceder à imprudência alheia.
Ela não desacelera, não vê farol nem homem verde ou de preto, nem a ironia de tudo isso.

Ele morre, com razão.

16 maio, 2009

Da corda do relógio para a forca

Em épocas mais ingênuas, achava que só era possível perder as apostas feitas. Fora do jogo, fora de risco.
Esses tempos se foram. Nesses dias não há lugar para salvadores e santos.
Estou cansado de dar corda no relógio para ver a hora da execução chegar com precisão. Na outra ponta da corda do relógio a forca sorri com a boca aberta e me engole cheia de promessas e um único capricho.
Não vou voltar a largar a direção – só decidi dirigir de olhos vendados, com o fígado como único anjo da guarda. Hora de assumir o controle, mesmo que seja para decidir conscientemente perdê-lo.


The Cardigan’s – My favourite game

15 maio, 2009

Paranóia amorosa

Acho que a mulher que serve meu café está apaixonada por mim.
“Nossa, fazia uma semana que você não aparecia [entrega de qualificação, uma longa história em poucas semanas], eu já estava preocupada que você tivesse achado outro lugar para tomar seu expresso”. Ela sempre lembra o meu pedido – latte macchiato, com um petit wafer. Enquanto a água esquenta, ela retoca a maquiagem pelo reflexo da máquina de expresso. A mão dela treme só quando serve o meu café, a espuma quase toca o pires apoiado pelas unhas recém-feitas. Ela me serve com um sorriso, cada vez maior, cada vez que me serve, cada vez mais sufocante.
Definitivamente ela quer casar comigo. É isso... ou depois de muito tempo procurando coisas sem sentido, eu passei a encontrar sentidos demais.

14 maio, 2009

Por que você mataria?

No Pará, alguém lhe passa uma foto e uma nota de cinqüenta.
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Precisava chegar na hora da reunião e acabou separando o casal de ciclistas.
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Apertou um botão para ativar a cadeira elétrica, anotou o horário e foi tomar café.
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Agora que ela descobriu tudo, não faz mais sentido continuar com essa farsa.
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A noite mal dormida impediu a firmeza da mão, necessária durante a cirurgia.
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Esse cara deve ter os cinco reais que faltam.
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Ainda tinha sobrado uma bala no revólver, quando alguém abriu a porta devagar.
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Desligou o telefone sem saber que esse era o último grito de socorro.

10 maio, 2009

TeleGenalva - 0800-88888888

Bem-vindo ao TeleGenalva, tecle 1 para crise existencial, depressão, conflito com namorado/a, familiares ou colegas de trabalho.
Tecle 2 para tentativas de suicídio, auto-mutilação, auto-medicação excessiva ou parada cardiorrespiratória.
Tecle 3 para ofertas de emprego ou alteração do horário de aulas.
Tecle 4 para convites ao cinema, balada, baile de tango ou corrida no Cepê.
Tecle 5 para divulgar casos amorosos alheios.
Tecle 6 para consultas amorosas sobre casos próprios.
Tecle 7 para empréstimo financeiro ou dúvidas sobre declaração de imposto de renda.
Tecle 8 para verificar se vou jantar em casa, para informações sobre meu almoço e horários de aula, ou para consultar o paradeiro do meu irmão e checar se ele está tomando insulina direito.

09 maio, 2009

Time left

I got it all backwards.
I thought that the time we have left was all the days to come until the last.
And all the days that were already gone were the ones I’ve had.

Nope.
Time has left us.

Every day that goes by is a day left behind.
We still have every day ahead of us.

I haven’t left you either – I still have some of you inside me, and that comforts me everyday.

08 maio, 2009

Cruzamentos

Ele formou-se engenheiro e assumiu o escritório da família. O outro seguiu a paixão não-correspondida pelos versos.

Enquanto rumava pela cidade em busca de inspiração, sempre a encontrava nas sombras dos edifícios da construtora com seu sobrenome.
Quando soube do ataque cardíaco, subiu ao alto da ponte que ele projetou para descer uma última vez.

No liceu, numa noite quase um século atrás, os dois colegas tinham sido um só e para sempre só deles, uma única vez.

Ao largo de toda essa trágica história, mas sem remediá-la, a Câmera de Vereadores aprovou na semana passada uma homenagem ao poeta obscuro: seu nome pouco conhecido será também o de uma viela pequena, na zona sul.
Sua pequena rua cruza com a avenida que o engenheiro planejou – e que também leva seu nome para a imortalidade de que foi privado.

Nessa esquina, num café, eu vou encontrar você um dia.

Escolhas erradas

Antes de deixar a cama, ele percebeu que foram as escolhas erradas.
Foram as escolhas erradas que o faziam encarar o teto cada vez mais claro, já tocado pelos primeiros raios da manhã depois de mais uma madrugada perdida.
Não precisava chegar cedo ao teatro – ela nem queria ver a peça. O final da tragédia (que ele não viu) não faria sentido para nenhum dos dois.
Definitivamente devia ter usado cinto, e não devia ter deixado ela tirar o dela, para fazer aquilo que ele tanto queria. Não devia ter ultrapassado os 120 por hora. A quinta latinha tinha sido tão errada quanto a primeira.
Ele foi etiquetado e trocou a cama ainda quente e vermelha por uma chapa de metal alguns andares abaixo.

03 maio, 2009

"Se eu pudesse" - Pedro Mexia

"Se eu pudesse
ter-te
em vez dos
versos
ou ter
um verso
em vez
de ti"

("Se eu pudesse" - Pedro Mexia - Avalanche)

02 maio, 2009

Tom's Dinner

And I look
The other way
As they are kissing
Their hellos

And I'm pretending
Not to see them
And instead
I pour the milk

(Suzanne Vega - "Tom's Dinner" - Solitude Standing [1987] - a versão original a capella não é frustrantemente mais adequada para enfrentar essea dias solitários e distantes?)


01 maio, 2009

Laranja e meia

Procurando morangos na freira, rodando entre os preços das bananas e a promoção para a madame, encontro de longe o que não queria, mas precisava.
Uma laranja – na verdade, sua metade. A metade que complementaria a minha.
Contendo o desespero sem atrair a atenção dos competidores para o mesmo troféu, senti a textura da sua pele e o seu cheiro, entre tantas outras.
Era uma metade perfeita, e o encaixe seria preciso, não fosse um detalhe, um excesso. Já (ainda?) havia outra metade, unida a essa metade que eu sabia ser a minha outra e única. Esta metade cancerosa estava podre, e comprometia, como um parasita, a metade que eu queria para mim.
É por isso que a outra metade da minha laranja custa mais do que uma inteira.

30 abril, 2009

O cheiro da Morte e dos rendimentos com tributação exclusiva retida na fonte – Ivan 8,8

Senti um caroço num lugar que não dá para publicar aqui. Percebi que algo estava errado quando revisava a coluna dos rendimentos isentos de tributação da minha declaração de imposto de renda.
No caminho para o hospital do outro lado da cidade, uma nuvem de fumaça revelou o quarto cavaleiro do apocalipse: Morte cavalgava seu corcel de aço, plástico e pneus de borracha, cruzando as faixas da marginal em zigue-zague.
Tentei escapar do relinchar estridente da sua buzina, mas uma coluna interminável de carros abandonados impediu o avanço do meu carro. Abandonando minha redoma de segurança e ar-condicionado, enfrentei o asfalto duro e o calor fétido que emana do rio Pinheiros.
Em segundos, porém, o cavaleiro vestido com um manto negro e acolchoado me alcança, sem revelar o rosto vazio por trás de seu capacete. Da caixa fúnebre em suas costas ele saca sua foice mortal: uma nota fiscal que eu havia esquecido de incluir no balanço para o contador.
Era chegado o Dia do Juízo Final, quando todos os mortos se levantarão e serão auditados pela Receita Federal – que permitirá o acesso dos justos à companhia do Criador, sentenciará os impuros ao purgatório do Pente Fino e os infiéis sonegadores à danação infernal.

29 abril, 2009

O calor da Guerra com consumação mínima – Ivan 8,7

Percebo a presença do terceiro cavaleiro do apocalipse nos campos de combate da balada do sábado à noite: Guerra ascende sua pira de sacrifício e satisfaz sua sede de sangue ao ritmo de funk e música eletrônica.
As primeiras vítimas dos morticínios são sempre as inocentes mulheres-e-crianças. Meninas de 16 anos sucumbem às doses massivas de álcool, ingeridas indiretamente por meio de Coca Zero batizada. As que ousam rumar sozinhas ao banheiro são devoradas nos cantos escuros por bandos de chacais com camisetas de times europeus de futebol. As mais cautelosas conseguem escorar as mais fracas que desmaiam, e protegem a chapinha dos primeiros jatos de vômito.
Os jovens combatentes inimigos travam suas disputas territoriais pelas fêmeas ainda sóbrias o suficiente para responder aos ataques orais, mas bêbadas a ponto de moderar suas reações à interação erótica tão esperada. Totalmente entregues à pilhagem e ao estupor, os guerreiros enfurecidos não conseguem mais responder aos gritos de guerra dos generais estrategistas que percebem a eminente escassez de comida e cerveja gelada.
Num canto escuro, eu vejo o Horror e choro porque meu celular não tem uma câmera fotográfica.

28 abril, 2009

O toque da Peste com odor floral e tripla ação bactericida – Ivan 8,6

O abuso da feijoada, após sete refeições consecutivas, atrai a atenção da segunda cavaleira do apocalipse. Peste surge depois das 11 da manhã e justifica seu atraso pela febre do filho e a greve dos perueiros. Eu sorrio com pesar (sempre tenho dificuldade com essa mistura facial de aquiescência e ternura) enquanto sobreolho uma reportagem sobre os protestos em oposição ao fim da Humanidade.
Sem perder tempo, a demoníaca encarnação de tumores viscerais varre meus domínios e liga o aspirador enquanto tento, sem sucesso, assistir à reprise de House. A empregada rapidamente despeja suas toxinas e cobre os assoalhos da casa com vermes, fungos, bactérias e Ajax Flores Campestres.
Sinto-me intoxicado e sufocado pela presença de outra pessoa com quem preciso dividir o resto da Humanidade e lavar a louça. Minha esperança é o refúgio no único local onde nem mesmo baratas poderiam sobreviver ou fazer faxina. Faço meu abrigo instável no território clandestino, no cemitério radioativo, na terra-de-ninguém do Quarto do Meu Irmão, onde nenhuma mulher, luz do sol ou produto de limpeza jamais ousou ir – e lá eu espero pelos novos sinais da perdição entre garrafas de Pepsi Twist light e pacotes semi-vazios de bolacha.

27 abril, 2009

O abraço azedo da Fome Delivery – Ivan 8,5

Com o soar dos sete despertadores do juízo final, abro o sétimo e último pote de feijoada congelada da minha vó. Horas depois, recebo a visita do primeiro cavaleiro do apocalipse. Fome surge na entrada de serviços, precedida pelas trombetas do interfone.
O cavalheiro retira seu elmo com viseira espelhada e se apresenta como Deividnelson. Sua mensagem para o mundo é igualmente confusa: ele clama que a pizza foi 20 reais, mais gorjeta.
Reclamo o esquecimento do guaraná família, o que traz dolorosas lembranças dos que se foram para um lugar mais próximo do nível do mar. Passo a noite em claro intrigado pela simbologia: esta pizza tinha oito pedaços – OITO!
Não pode ser coincidência; deve ser um novo sinal, que preservo intocado na geladeira.

26 abril, 2009

O Eremita recebe a visita da voz divina – Ivan 8,4

A morte de meu travesseiro poderia ter me abalado em dias anteriores, mas agora me sinto apaixonado pela minha vida revigorada. I’m fulfilled by the emptiness of all those long gone.
E a esperança é a última a perceber que todo mundo já foi pra casa faz tempo e que só sobrou a conta para pagar. Recebo um e-mail de outra sobrevivente igual a mim, que vive num pequeno povoado isolado, uns 450 kms daqui para o leste. A mensagem é curta, mas de uma beleza rústica: “seu blog, como a vida, é uma merda.” As palavras me aquecem e reafirmam meu novo propósito para esses dias que ainda me restam. Vou espalhar os dez mandamentos em post-its que me foram revelados por um anjo stripper de biquíni.
À noite, a aparição ruiva retorna só de botas e batom, e pede para eu arrumar o quarto de hóspedes porque os Quatro Cavaleiros do Apocalipse estão chegando - logo agora que eu estava começando a me divertir.

20 abril, 2009

Os novos dez mandamentos em post-its – Ivan 8,3

1. Não age somente em prol de bem maior ou como se teus atos fossem regra universal, mas também fazê-o como cavaleiro medieval, gentleman britânico ou como o Superman ou outro personagem de HQs – e de preferência da forma que te traga mais dor, mágoa, rancor ou nobreza.
2. Não mentirás, nem sonegarás, nem trairás, nem matarás, nem prejudicarás ninguém (nem se ele merecer), muito menos divertir-te-ás.
3. Ama, acima de todas as coisas, a mim, seus pais, seus irmãos, seus semelhantes, seu país, sua empresa, seu time, a natureza, o desenvolvimento sustentável, você e todas as coisas, nessa ordem.
4. Não perderás nem ignorarás suas tarefas anotadas em post-its, ou serás condenado à danação e ao esquecimento das senhas do net-banking.
5. Ria sempre do seu próximo como ele riria de ti mesmo.
6. Guarda os domingos para depois.
7. Para cancelamento da fatura, verificação do saldo, desespero ou crise com namorado, tecle 8, ou aguarde para falar com um dos nossos operadores.
8, 9 e 10: Em caso de dúvidas, desliga e liga de novo.

19 abril, 2009

O sacrifício do travesseiro mártir – Ivan 8,2

Meu travesseiro morreu na madrugada de ontem. Acordei de manhã do seu lado na cama e o chamei para o café, mas ele não se mexeu. Quando tentei fazer uma massagem para animá-lo, percebi que ele estava frio, imóvel. Em desespero, tentei chamar uma ambulância, mas as linhas estavam desconectadas desde que a humanidade acabou e desceu a serra para aproveitar o feriado no litoral.
Tentei reanimá-lo seguindo as instruções sobre ressurreição cardio-pulmonar que encontrei numa caixa de sucrilhos, mas toda vez que assoprava sua boca acabava coberto de inertes penas de ganso.
Conforme os desejos expressos em seu testamento, o enterro celeste seguiu o ritual budistas de dissecação. Poucos urubus comparecem para refestelar-se nas plumas que voavam, com o vento, para um lugar melhor, flutuando sobre a pista local da marginal Pinheiros, sentido Interlagos.
Nessa noite, enquanto adormeço no sofá reclinável da sala, um anjo ruivo surge num biquíni e me entrega os novos dez mandamentos em post-its.

18 abril, 2009

A Humanidade termina e desce a serra no feriado – Ivan 8,1

Na sexta-feira, a Humanidade acabou e desceu a serra para aproveitar o feriado no litoral.
Eu fiquei para trás, sozinho.
Minha missão é audaciosa: gravar a final do paulistão para meu irmão, pagar a conta do gás que vence na segunda e registrar os últimos suspiros de uma sociedade vazia de significado.
Esse é o diário de um sobrevivente, um evangelho repetitivo e desagradável.
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As cinco profetas e ex-namoradas já haviam alertado sobre os sinais, como a vitória do Obama, o aquecimento global e o fim dos episódios inéditos de House. Mas todos os outros ignoraram os sinais, e eu continuei postergando o retorno ao cardiologista. Quando senti o braço esquerdo começar a formigar, já era tarde demais: os ingressos para o Radiohead sempre esgotam depois que o cara que furou a fila compra o dele.
Seis horas de Guitar Hero depois, eu não tinha mais forças para terminar de digitar minha qualificação para o mestrado nem para qualquer outra auto-indulgência mais manual.

13 abril, 2009

Elenco

Um professor, um cientista, um jornalista, um trovador e um ser humano entram num bar.
Quando eles vão pedir suas bebidas, o barman começa a tossir e a ficar roxo. O cientista percebe que ele está engasgando e começa a rascunhar algumas propostas (como o aprimoramento da manobra de Heimlich) a serem publicados num periódico no próximo semestre. O professor explica ao homem que ele está sufocando e vai morrer se não prestar atenção nas suas recomendações.
O barman morre, evitando assim responder às incisivas questões do jornalista sobre seus objetivos reais com aquela simulação que pretenderia deslocar as atenções sobre o escândalo do financiamento da campanha do prefeito – no dia seguinte, o sobrenome do barman sai errado no obituário.
Só então o ser humano horroriza-se com o ocorrido – ele tinha saído, momentos antes do desastre, para ajudar uma velhinha a atravessar a rua.
O dono do bar contrata outro barman; a velhinha vota de novo no prefeito, que se reelege.
Anos mais tarde, o trovador publica este texto num blog.

14 março, 2009

Alunos 1 X 0 “Professor”

- ... então, os mísseis lançados contra o sul de Israel levaram a uma retaliação: o bombardeio e a ocupação da Faixa de Gaza entre o final do ano passado e o começo desse ano. Alguém tem mais alguma dúvida sobre os conflitos, ou sobre as diferenças de objetivos do Hamas, Fatah, Kadima e Likud?
- Professor, você não vai mais escrever na Super?
- Eu precisei parar um pouco, para poder continuar com minhas aulas aqui e na outra unidade, além do mestrado na USP e a edição de uma revista acadêmica sobre comunicação – só consigo fazer quatro coisas de cada vez [piada mal-sucedida]!
- E por que você largou o seu único trabalho legal?
- ...
Essa atravessou a couraça do personagem/professor e desarmou minhas defesas.
O aluno não ter percebido o quanto isso soou ofensivo não foi o pior – o grave foi eu não ter uma resposta nem nunca ter pensado nisso antes, dessa forma.

Pelo menos outra aluna elogiou minha camisa nova.

24 fevereiro, 2009

Um dia como hoje

Há algo de preocupante em precisar recorrer a um calendário, ao relógio ou ao colega ao lado para descobrir que dia é hoje. Não conseguimos reconhecê-lo?
Seu colega ao lado, que sabe que dia é (mas não qual será o seu dia), não pode te explicar por que você não sabe – ignorância não se explica, tampouco nos alivia.
**** ****
É triste ter que enumerar para individualizar os dias, eles acabam somente enfileirando-se ao infinito, do um ao trinta, ou trinta e um, ou menos; e voltando ao um, acrescentando mais um mês, um ano – uma engrenagem menor que move outra maior, mais um grão de areia na parte de baixo da ampulheta, igual a todos os outros que ainda restam em cima.
Se os dias não fossem tão confusos e iguais (como nós), saberíamos quem são (e quando seria o nosso dia), ou eles continuariam a dissolver-se em multidões não mais padronizáveis, mas caóticas? Reconheceríamos, ciclopicamente, ao menos o último, antes que tivesse passado e levado tudo?
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Dizer que hoje é terça não é uma resposta – o que é uma terça, afinal?
É só uma etiqueta: assim como um crachá oculta o psicopata atrás do terno e gravata da normalidade, não conseguimos prever, de longe, quais são as verdadeiras intenções por trás desse nascer do sol dissimulado ou dessa garoa que impede a alvorada de respirar.

19 fevereiro, 2009

Lista em xeque

Primeiro você anota o que precisa fazer num pedaço de papel. Num caderno pautado, lista as ferramentas e materiais, agenda consultorias com amigos e soma os custos numa planilha. Os post-its começam a crescer como bolor ao redor dos móveis e na geladeira com alterações de última hora. Depois de traçar algumas rotas logísticas pelo mapa, programa o despertar para bem cedo, para tentar concluir tudo até o fim do dia.
Depois de anos de procrastinação, meses de necessidade, semanas de ansiedade e dias de preparação, em poucas horas está pronto.
Só então percebe o erro de principiante. Um vício que contaminou o projeto desde o início. Devia ter anotado em algum lugar por que precisava de tudo isso.

18 fevereiro, 2009

Múltipla escolha

Tente apresentar uma amiga sua que está solteira e que "super-combina" comigo; o encontro arranjado será a solução de todos os problemas – dela – porque, invariavelmente, ela acabará se envolvendo com (exemplos retirados de situações similares vivenciadas nos últimos meses):
a) um italiano em visita ao Brasil para concluir os últimos três anos do seu doutorado
b) um contador de 1,90m com o apelido de “Teta”
c) um japonês alcoólatra sem camisa
d) um ex-ex-namorado
e) uma bibliotecária
Enfim, acho que é basicamente isso o que as mulheres querem (pelo menos do ponto de vista das minhas experiências passadas).
...
Em outra história não-relacionada, minha auto-estima decidiu demitir-se sem aviso prévio para seguir carreira solo – mas o que importa é que ela em breve vai encontrar alguém que possa fazê-la feliz... e ainda somos bons amigos!

09 fevereiro, 2009

Piloto passageiro

Os olhos arenosos mesclam a estrada, o horizonte e o começo do sonho num piscar sem retorno à lucidez. Relaxadas, as mãos escorregam pelo volante, saindo da posição 10:10 e voltando o tempo para 9:15, 8:20 – às 7:25, esbarram na perna que começa a pesar no acelerador. O som da chuva começa a se distanciar, assim como o rádio; só resta o hipnótico mantra pendular do limpador de pára-brisa.
Sonha que voa acima das nuvens que ainda chovem; a leve turbulência seria um sinal de que as rodas engasgam nos olhos de gato ao cruzar as faixas. O resto da sua consciência racionaliza que, se o carro pender à direita, restaria ainda duas faixas; se for para a esquerda, a perna sobre o acelerador deve garantir velocidade suficiente para uma capotagem no canteiro central.
Do seu sonho, olhando para baixo, pode ver um carro que se aproxima pela faixa do meio e deve, a qualquer momento, buzinar para despertá-lo e ancorá-lo de novo ao solo e a pista – até torce por uma colisão menor com esse carro, um pára-choque amassado em troca da garantia de um despertar.
A curva insinuava-se na neblina quando uma grande nuvem cinza cobriu os carros e engoliu todo o mundo do sonhador, que voa cada vez mais para o alto e não vê mais nada.
Esse descontrole desesperador e silencioso é o que eu (e talvez você também, há ainda mais tempo) tenho vivido nos últimos três anos da minha vida.

08 fevereiro, 2009

Cafés




















(Wanderlust)


Black as the devil
Hot as hell
Pure as an angel
Sweet as love
(Talleyrand)


Negro como a noite
Forte como o pecado
Doce como o amor
Quente como o inferno
(Café Suplicy)

07 fevereiro, 2009

Perdas e perdões

“Não se preocupe, é uma virose que está rodando com o inverno”, disse o doutor enquanto recomendava repouso e o colocava sob observação.
A infecção generalizada, no segundo dia, parecia uma garantia de bastante repouso em poucas horas. Sob os olhares úmidos dos filhos, e protestos da equipe da UTI, removeram por poucos minutos o tubo que garantia a respiração.
As palavras foram poucas, mas o também rarefeito ar a cada tosse alongou a confissão: aquilo tinha acontecido há muito tempo, mas não há tempo suficiente para esquecer-se. Sob suplícios moribundos, só os lábios da esposa cederam o perdão, enquanto os filhos calavam, decepcionados pelo fim não ter chegado a tempo de poupar a desgastante revelação.
No terceiro dia veio a alta do hospital, acompanhado das congratulações e da surpresa da equipe que cuidou do caso. Mas os médicos só estavam felizes pela recuperação do paciente porque não ouviram sua história – ou talvez só estivessem aliviados por não ter que enfrentar mais um processo duplo por erro de diagnóstico.
Ninguém apareceu para buscá-lo na porta do hospital – nem esposa, nem filhos, nem perdão – só o taxista, que agradeceu a gorjeta depois de deixá-lo no meio da ponte entre a zona sul e o fim.

06 fevereiro, 2009

Escrever para não viver

Evitar o ridículo poderia ser um objetivo para qualquer escritor. Mas inviabilizaria qualquer outra palavra depois de “Eu...”.
Não consigo ler essas frases aí embaixo e sentir um pouco de vergonha pelo ridículo de escrevê-las – e mais, embaraçoso ainda, publicá-las. Mas evitar o ridículo seria fugir de mim mesmo e ignorar meu mundo.
Talvez seja circunstancial: não dá pra levar a sério um cara mal barbeado, de samba-canção, camisa aberta no peito, chapéu panamá e um sóbrio bloquinho de anotações preto.
Há algo de ridículo no próprio ato da escrita. Se pudesse beijar Helena ou saquear Tróia, Homero não gastaria horas com a Ilíada.
Mas a tentação é grande demais: como não registrar algo como “os gestos dos heróis não precisam de adjetivos; a única ação para alguns escritores envolve tinta, suor, dores nas costas, miopia e calos nos dedos”?

05 fevereiro, 2009

As madrugadas são para os fortes

Algumas pessoas são maiores do que suas camas e recusam-se a algemar-se entre lençóis, oferecendo o pescoço à guilhotina do travesseiro.
Para essas pessoas, as madrugadas são o Velho Oeste selvagem e cheio de oportunidades, o Atlântico com as promessas do Novo Mundo. Aos que ousam cruzá-las, há a promessa esperançosa da terra-a-vista, vislumbrada, num novo horizonte, pelo nascer do sol.
Madrugadas são o campo de batalha contra o inimigo interno e invencível do sono, ceifador que, como a morte, tenta os justos com paraísos oníricos e ameaça a todos com pesadelos dantescos. “Um dia você vai morrer, e será assim” – sussurra o desenlace inconsciente ao que sucumbe e adormece.
São o teste para os que não tem obrigação de acordar cedo e o desespero para os que, na verdade, não tem motivos para levantar-se em qualquer horário porque, afinal, nunca realmente despertaram.
É o único lugar em que se pode escrever em paz, longe da visão incandescente do mundo. São um convite em branco para os que se recusam a esperar o próximo ataque de diarréia cotidiana de olhos fechados.

03 fevereiro, 2009

Ligações

Alô?
E aí, cara, como é que vocês andam?
...
Pro México?
Mas você ligou pra ela?
Mas ela não pode ler e-mail no México?
...
Como assim, quanto tempo?
...
Que ex-namorado?
.
Tá, a gente se fala outro dia.

02 fevereiro, 2009

Enjoy your cup of depression

O problema não se resolve com uma bolsa nova. Ou com um telefonema. Nem com um corte de cabelo diferente. Muito menos com giletes. Um pedaço de bolo só pioraria as coisas.
Podia tentar um pouco de sexo, mas daria muito trabalho. E seria tão útil quanto os 10 minutos a mais de soneca.
Sei que o médico não aprovaria, mas a única coisa que parece funcionar é continuar coçando a casquinha da ferida.

01 fevereiro, 2009

Alheio

Cada página lida é uma frase não escrita.
Cada mapa estudado, um passo não dado.
Cada filme na platéia, uma cena não ensaiada.
Todo diálogo é um beijo sem toque.
Cuidado com as vidas alheias. Evite a tentação de que elas ocupem e previnam todo o seu viver.
Limite sua curiosidade, seu interesse e sua dedicação aos gestos que não são seus. Ou, nos seus últimos dias, só terá histórias alheias para contar.

Amador

Queria escrever um livro sobre o amor. Não sei se isso ainda é possível. Não conheço ninguém que ainda consegue escrever meia dúzia de frases verdadeiramente vivas e novas sobre amar. Oito frases, então, seria impossível.
Ainda é permitido (e é a escolha mais óbvia e acessível) cantar o amor, ou até mesmo filmá-lo, pintá-lo ou fotografá-lo. Talvez tenhamos que ser gratos por ainda poder vivê-lo aos poucos.
O problema de escrever é que exige todo o seu amor. Gasto como método, não resta muito para ser também objeto ou fim para nós, escritores-amadores.

30 janeiro, 2009

Tétrico

Jogo tetris no meu quarto com livros, caixas, roupas e outros fascículos de meus dias passados. Tudo muda, a poeira respira e se reassenta, de uma prateleira espanada para a outra. Dificilmente qualquer outro que comparasse sua visita de ontem com o novo cenário de hoje poderia notar os sutis aprimoramentos. As engrenagens do meu relógio cotidiano começam a mover-se enquanto minhas mãos ditam o pulso das rotações.
Não encontrei espaço para suas cartas - você sempre foi indecifrável.
Não há muito espaço para mim, tampouco, entre meus pertences.
É, construí uma bela cela ao meu redor, com grades de papel que eu temo rasgar.
Seria uma ótima pira fúnebre, não fosse o frio predominante que afasta qualquer possibilidade de uma chama, uma paixão, uma verdadeira mudança que supere arrumações corriqueiras.