19 novembro, 2006

Não comerás

(em tempos de anorexia...)
1. Quando não tenho o que fazer, o tédio sempre me dá fome.
2. Acho que acabo comendo muito para ver se preencho esse vazio aqui no meio, ou para ver se encontro o meu limite.
3. Como quando me sinto sozinho ou para acompanhar todas as pessoas ao meu redor que estão também comendo.
4. Às vezes, como porque preciso; outras, porque não deveria.
5. Ultimamente, tenho comido para fugir do trabalho – com pausas para lanchinhos que se emendam e devoram dias inteiros.
6. E quando tenho ódio, como, como muito.
7. Como para me punir e para me vingar – como para que você tenha que suportar a vergonha e o asco da minha obesidade.
8. Como para ignorar a certeza de que um dia serei também comida.

18 novembro, 2006

Trocando em miúdos

1. Uma metáfora é o melhor jeito de dizer o que se quer, sem ofender.
2. (Não confunda com o ato falho, que é o pior jeito de se dizer o que não se quer, sem querer).
3. Vamos supor que você brigou com o seu pai, porque ele não te deixou viajar no final de semana em que você planejava dormir com seu namorado.
4. Aí, na falta de um ombro amigo, você senta e descarrega sua frustração no papel por meio de um jogo de palavras e imagens; recomendo associações livres.
5. Dessa forma, seu pai vira uma chuva, seu namorado se transforma em um pedaço de bolacha e o final de semana é um piquenique que uma formiga – você! – invade.
6. Ocorre que, honestamente, ninguém vai entender o que significa aquela formiga bombardeada por uma tormenta de orvalho, nem como a garoa conseguiu formar um filete de rio que levou a bolacha embora e afogou o inseto guloso.
7. Nesse momento, não entre em pânico: seu texto saiu do controle (muito freqüente nessa época do ano), mas ainda há tempo de abandoná-lo com segurança.
8. O problema real só começa quando você percebe que seu pai, baby, também era uma metáfora.

17 novembro, 2006

Preservação pessoal

1. Estava bem atrasado, fazendo a barba e ouvindo as últimas no rádio enquanto a ducha rápida esquentava.
2. Aí, um barulho tão sutil quanto intrigante: Raspflappiusplosh.
3. Dentro da latrina, que agora mais parecia uma fonte barroca, um passarinho.
4. Ele estava desesperado por ter caído na minha privada, mas o que era realmente estranho e surpreendente – pelo menos para mim – era o fato de que eu agora tinha um pássaro nadando entre meus dejetos.
5. Olhei ao redor em busca de uma solução para o impasse, mas... nada.
6. Se ele tivesse caído mais ao lado, em cima do bidê (que eu nem uso!), teria sido muito mais fácil.
7. Dei a descarga e pronto.
8. Eu estava bem atrasado.

16 novembro, 2006

Protegido

1. Quando tinha sete anos, o Collor ficou com a minha poupança.
2. Desde então, já fui roubado outras sete vezes, duas delas com arma na cabeça: o kadet da minha mãe em São Caetano; oitenta reais quando estava com o braço enfaixado em Santo André; dez reais quando voltava para casa do enterro de um amigo; minha carteira e a chave do carro (mas desprezaram o carro); e dois toca-fitas.
3. Uma vez levaram até minhas calças, mas deixaram as meias e a cueca, no meio de uma trilha em Paranapiacaba.
4. Minha previdência foi-se com o Banco Santos.
5. Um apartamento incendiado apagou o resto que guardei da minha vida.
6. Cada novo alarme, cada seguro, cada medida de prevenção me parecem tão injustos e violentos quanto os outros assaltos.
7. Acho que com o tempo eu fui me acostumando, e acabei percebendo que não tenho nada – as coisas estão só temporariamente sob minha guarda.
8. Mas ninguém pode tirar minha viagem para o Chile durante a faculdade ou aquele beijo que você me deu no sofá da casa da sua vó.

15 novembro, 2006

Próximo

1. No interior do Laos, um jovem busca água para a avó que aguarda numa cama simples de feno.
2. São sete quilômetros até o poço, e depois de algumas horas na fila restam os mesmos sete quilômetros – mesmo que o peso do jarro pareça ampliar o retorno.
3. Já faz alguns meses que um caroço apareceu no pescoço da avó, e desde as últimas festas ela se recolheu para sua cabana sem mais sair para alimentar as galinhas.
4. Nas últimas semanas a guerra voltou e colheu seus irmãos.
5. A plantação abandonada arde sob o sol, quando ele se aproxima da casa no raiar da manhã.
6. Também já não há mais galinhas para alimentar – o que é bom, pois não haveria mais grão para elas nem para ninguém.
7. O quarto, com a janela fechada, ainda está escuro, mas ele já percebeu que a água não vai ser mais necessária.
8. O pior é que roubaram o rádio do meu carro hoje – já é a segunda vez.

05 novembro, 2006

Metonímia para uma empreitada americana

1. Empreiteira americana desiste de reconstruir Iraque
2. "A Brechtel, maior empresa de engenharia dos EUA, está deixando o Iraque, depois que 52 dos seus funcionários morreram em atentados e seu último contrato venceu.
3. Está partindo sem cumprir sua missão: reconstruir as centrais de energia, água e esgoto.
4. Bagdá recebeu menos de seis horas diárias de energia no mês passado e a maioria da população não tem água tratada e saneamento básico.
5. A maior parte da verba de US$ 21 bilhões destinada à reconstrução foi usada nos últimos anos para a segurança e não há mais dinheiro em caixa.
6. Alguns funcionários permanecerão no país para cumprir formalidades administrativas, mas o trabalho iniciado após a queda de Saddam Hussein, em abril de 2003, foi encerrado, disse Cliff Mumm, diretor de infra-estrutura da empresa.
7. A Bechtel assinou 99 contratos, mas eles foram abandonados por questão de segurança." (AFP e NYT)
8. Peço desculpas pelo teor jornalístico dos últimos dias - em breve retomaremos a programação normal - mas não podia deixar o momento político dessa história passar.

04 novembro, 2006

Em família

Vô: Você viu, Ivan, que agora vai aumentar os ônibus em São Paulo?
Vó: Antônio, vai pegar os copos!
Vô: E o metrô também vai aumentar agora, parece que vai pra... tá dois e trinta.
Vó: Esse Lula é um desgraçado mesmo, esperou a eleição para aumentar tudo de novo.
Vô: E agora o desconto dos aposentados acabou também, agora o aposentado tem que pagar ônibus também, e tá mais caro... eu vi no jornal da Fátima e do Bonis.
Pai: Pai, isso é só para os ônibus interestaduais de Goiás, e nem foi aprovado ainda, tá na Câmera.
Vô: Agora eu vou ter que pagar ônibus!
Vó: Esse Lula, ele é mesmo um... Antônio, cadê os copos?

03 novembro, 2006